" O Carnaval já nasceu connosco..."









"Todos os anos saíamos mascarados … então o Leonel aparece lá com um diabo pintado, era uma máscara das mais antigas (…) A partir daí comecei a fazer, gostei daquilo, por acaso foi, foi mesmo um gosto (Adão Almeida)"


"Adão Almeida  é o mais antigo artesão de máscaras de madeira, mas faz questão de afirmar não ser o primeiro; outros houve antes dele, enunciados nas narrativas dos mais idosos. As máscaras de Alberto Costa,

Miguel Matança e do tio Mansinho do Travasso serviram de modelo para se

iniciar na arte, mas foi sem dúvida a experimentação o elemento fundamental

de aperfeiçoamento que lhe permitiu construir mais de 1.500. Sua máscara de

diabo, pintada de vermelho, foi cartão de visita do carnaval de Lazarim durante

a década de 1980, e sempre pintou as máscaras, até o dia em que a “reinvenção

da tradição” lhe impôs a cor natural da madeira, como modelo a reproduzir. As

máscaras do diabo continuam a ser as mais solicitadas, mas também constrói

figuras míticas de seu imaginário.

Segundo as narrativas dos mais idosos era comum pendurarem nas máscaras do diabo cobras do rio, sardões, sapos e sardaniscas, que se contorciam, conferindo ao mascarado um aspecto ainda mais assustador. Essas memórias tomam forma nas máscaras de Adão Almeida, um dos artesãos de máscaras mais conhecido de Lazarim."









O Carnaval já nasceu connosco e já os velhos faziam isso, mas o Carnaval era mais rigoroso nesse tempo, o pessoal não era tão educado. Qualquer briga de namorico ou da rega das águas, era pago nestes dias. Havia quase sempre zaragatas. … Também acompanhei o farranjo mas no entanto eu livrava-me das marés, que é quando via a coisa a ficar azeda, porque às vezes o Carnaval durava mais de um ano pelos tribunais. (José Rua, reformado)








Havia muitas vinganças. Eu tinha uma tia que era professora primária mas era muita má. E não havia Entrudo em que ela não saísse para moer, inclusive no marido. Para dar pancada, mas pancada a sério. (…) Eram as mulheres que se vestiam de Careto. É um ritual de inversão não tenha dúvidas, é assim que eu me lembro da minha infância. (Amândio Lourenço, Presidente da Casa do Povo)
(...)"


"Com a fome que trazeis / Passais a vida a ladrar / Comeis a burra in-

teirinha / Nem a rata vai escapar. / Para manter a tradição / E o car-

naval não findar / Vamos repartir a burra / Para a boca vos calar.



Como já estavam há espera / Está cá o fanfarrão / Para dar carni-

nha a todas / E manter a tradição. / A todas vamos dar carne / Pois

é isso que elas querem / Não importa de quem seja / Consolar-se

elas preferem."


"Os testamentos da comadre e do compadre tiveram consequências

sociais graves, que se refletiram em processos judiciais e noivados desfeitos.

A memória coletiva preserva esse tempo de conflitos, atribuindo à evolução

dos tempos a normalização das relações entre vizinhos. Por outro lado,

a institucionalização das práticas carnavalescas retirou o componente de

transgressão e de secretismo que girava em torno dos caretos, e do grupos das

comadres e dos compadres. A leitura dos testamentos realizava-se nos três

lugares de Lazarim, permitindo a criação de um percurso que envolvia todo

o espaço da comunidade numa unificação simbólica. Atualmente concentra-

se no Largo do Padrão, diante do edifício da Junta de Freguesia. Essa alteração

obriga os habitantes a deslocar-se a um único lugar, mas permite aos forasteiros

acompanhar todas as fases do ritual. As práticas carnavalescas transformaram-

se numa representação performativa para visitantes, e a animação dos caretos

resume-se a um desfile de mascarados, posando para sessões fotográficas, sem

desempenhar o papel socialmente desestabilizador pelo qual são recordados."


"Esse testamento é envolvido num grande secretismo para que nin-

guém saiba. O principal objetivo é brincar com os da nossa idade

por isso é que fazemos o testamento (Paulo Loureiro).


Tentamos saber umas pelas outras o que eles andam a fazer. Eles

fazem tudo em cima do joelho e também têm muito secretismo,

mas também têm linguareiros (Isabel Loureiro)."















"As comunidades rurais possuem um conjunto de saberes e de práticas

que pretendem preservar e transmitir às gerações futuras, como patrimônio

cultural e identitário. A vila de Lazarim, no concelho de Lamego, norte de

Portugal, encontrou no carnaval um tempo de exceção para afirmar sua

identidade cultural, recuperando os ritos, os símbolos e os textos associados

às festas de Inverno. A partir de 1985 as práticas carnavalescas foram

institucionalizadas, num modelo performativo que procura mostrar a tradição

local ao mundo global. A intervenção da Junta de Freguesia, da Casa do Povo e

a vontade política de seus elementos foram determinantes para a reinvenção

da tradição, numa ação concertada com a escola e o envolvimento das famílias.

No processo de invenção da tradição (hobsbawm; ranger, 1983) recuperam-

se os saberes de um passado rural que atribui sentido e significado à vida da

comunidade, resgatando práticas culturais como capital simbólico."











Excertos do texto CARNAVAL AQUI EM LAZARIM SEMPRE FOI MEIO MAROTO. MÁSCARAS, TESTAMENTOS E PRÁTICAS CARNAVALESCAS por Dulce Simões, antropóloga
© Fotos Luís Conde
Lazarim,  2006, 2008, 2014, 2015, 2017, 2018, 2024