Às Mulheres De Onde Vim

Texto Iris Lican
Fotografia Luis Conde
Sintra, Junho 2014




ÀS MULHERES DE ONDE VIM
Parte de mim

Viver é mais do que sobreviver
Pela Bravura, pelo poder, pela ternura


Gratidão pura








Trago comigo uma saudade, desde sempre, não sei de quê
Nasci de olhos postos no mar,
Aguardando um retorno ao infinito
que me fez estar acordada e acreditar o sono uma morte










Houve uma fé
Que me pare a cada instante
vem de longe nessas ondas amargas
E traz o alento à espera







Maria Alexandra e Adelaide (bisavós) sabiam:
a verdadeira fé não é uma crença,
é a experiência concreta do que fazemos pelas nossas mãos e pelo coração nelas








A devoção pesa nas mãos
Mas é tenaz,
é de pedra

E também quebra
E desfaz









Silêncio
Espera
Sem idade








Nas minhas mãos em prece
Morreu o Deus cristão das minhas ancestrais
Renasceu a Deusa pagã que por mim clama
Nas minhas mãos se reúnem
E como areia,
Se desfazem

Se deuses há, são de terra, mar e vento









Mais frágil que pedra
Aqui me rendo









Todos os dias olho para trás
Ainda te vejo,
Celeste, avó varina
Nos brados do mar alto
Que trazias no teu pregão e no meu nome dito por ti

Desgostei-te logo
Só na morte percebi
O tanto que me eras e deixavas

Só na morte te vi
E Mulher me encontrei









Esse véu que cobria a vergonha
E pudor da condição despiste-o tu
Na coragem de seres mãe solteira
De ganhares a tua vida
De escolheres o teu homem

Desvelaste o caminho
Guerreira desnuda
Brutal como a pedra
Naturalmente resistente
Endurecida, também

Há nessa pedra
Maresia
Teimosia

Eu quero essa dureza por dentro,
Mas a suavidade da água por fora,
Envolvente sabedoria


Que dissolve e guia








Eu visto e dispo esse véu
Véu de género e condição

Ivone (minha Mãe), carregaste-o por inteiro
A Mulher perfeita,
(Filha, esposa, mãe)
Essa que te come por dentro por ser inatingível

Não seremos nunca

Oh Mãe,
O véu de ser mulher é negro, como o útero e a noite
É a poeira do caminho
É o sonho misterioso
O imaculado é demasiado virgem,
Não andou e chora não pelo que vive mas pelo que imagina

O nosso corpo é outro,
Pertence a Madalena mais do que a Maria

Oh Mãe,
Se te visses como eu te vejo
Na amplitude do desejo de Amor
Está a tua grandeza infinita
Minha Mãe,
És tão bonita!

O véu negro
Eu dispo e visto,
Por mim, por todas nós








Nos meus olhos
Estavam imagens
De vidas que não as minhas
Lá atrás,
No berço do olho, lá por dentro

Fui à procura
Tive que olhar para dentro e silenciar

o tanto ruído  








Está neste ventre
De ventre a ventre parido
De ventre a ventre parideiro
Mar de Vida
Daqui nasce o mundo inteiro

Capaz ou não,
Há que parir
Há que partir
Há que ficar
Há que seguir
Há que lograr
Há que falhar
Capaz ou não








Eu queria o fundo mais profundo
Como do mar
Para (me) encontrar









Espera

Em mim, o estar e o ser

Dissolvidos e reunidos

Formados e desfeitos como a onda







Um dia voltarei a ser pedra













E das pedras caídas
Farei caminhos no invisível

E das minhas pedras de dentro,
Areia










Eu vim da trouxa da lavadeira
Da pedra do sabão que é espuma do mar
Do colo agreste da varina minha avó







Trago-a ao ombro para que me fale e guie







Espero







Trago ao peito

Como endurecemos com a dureza que a vida traz?







Quebranto
Deste tanto, tanto, tanto








Vim de gente simples,
Que pariu pedras
Para embalar a vida

Da bisavó camponesa,
Da bisavó parteira e benzedeira
Da avó lavadeira e varina
E da outra avó, que se transformou em pedra
Tão seca que nunca amamentou nenhum
dos 13 filhos que do seu ventre de pedra nasceram










Na Beira baixa
Está-se na montanha de pedra serrada como
À beira do mar

À beira do abismo
Á margem e mercê do tudo e do nada

Houve fome
Ausência, abandono e guerra
Houve retornos
Que nunca conheceram paz

Houve o esmagador abuso
E o grito mudo que ainda sangra
Invisivel, inaudivel

Houve paz e alegria
Na dureza da pedra
Onde menos se esperava
E floriu como a urze e o zimbro

Teimosamente
Na pedra

Onde se chora
também se canta















De tudo sou feita
Em tudo me desfaço
Aprendo a ser pássaro para não rastejar

O medo é pesado
Quando vem por legado
E mata a criança
Quando lhe é dado

De herança










Olho de frente
Por escolha
Quero ver
Inteira, tudo
Não sou pedra, nem areia
Nem deixo de ser











A canastra
Foi berço de minha mãe

Avó Maria
Carregava nela
A neta
E o que da horta nascia

A canastra
Acompanhou minha Avó em Lisboa inteira
Desde a madrugada aberta
Onde o peixe e a maresia
Traçaram sua vida

A canastra
Levou pedras da mina
Carregadas à cabeça por minhas tias,
Quebradas por meus dois avôs

Panasqueira
negra por dentro
Negra por fora
Até agora








Eu trago à cabeça
Equilibrada
A história passada
Que me foi dada







Mas crio-me
De outra maneira








Como levo as pedras?
Que pedras são?








Volto ao mar
Meu avental é de renda fina
Bem diferente
Do pano gasto
Volto do mar










Sou a menina mulher que busca o embalo
A viagem do berço
Em mar alto










Mãos minhas
No nascer do dia
Há mais do que apenas chão











Nasce a cada dia
Da pedra já se fez pão

também nasce desta mão







pão oração coração
casa onde não há
ninguém tem razão

a fome tem muitas formas
a boca muitos caminhos








Sou a menina velha
A mulher cansada
Pernas tão longas,
Já tão quebrada







Mergulho no mar
Lavo meus pés
Olho para trás
Sei quem me vê







Fiz meu altar
De dentro do chão
De dentro do céu
De meu coração











Hei-de morrer
Neste altar
de mim
Voltarei à pedra

Serena

Sem fim







Da pedra
Desses ossos idos
Dos caminhos percorridos
Fez-se meu corpo

Da pedra
Faço de novo

No começar
Criar

Coragem










Ai avós
Ai avózinhas
Tão minhas
Tão idas
Tão minhas

Eu vos oiço
Sinto e sou







Mas também sou quem renasce
Quem se faz de novo
Do que já se foi


(Só me levo a mim)







Devolvo as pedras
Ao mar
Hora de entregar







Vazio

Pleno vazio

O silêncio também é cio







Vejo e choro
O espaço aberto
Que sendo ferida
também é aberta possibilidade







No desfazer há alento
Morrer é sempre mais fácil que viver
É um desejar parado
Um apego

Mas não posso aqui ficar







Escolho medrar
Então,
O que farei desta imensa liberdade?







O que fará a imensidão de mim?







Permaneço
Vou

Mar
Leva e traz as pedras

Oh Mar
Eu hei-de ir,
Tu hás-de ficar

Em ti me entrego
Absolutamente, absolvidamente

Amar
Minha Mãe
Mar




A Ivone, minha Mãe
A ti sempre, a mais compassiva, integral e dual de todas as mães.
A Celeste, mãe de minha mãe. Mãe solteira, mulher livre, financeiramente autónoma;
Varina que escolheu por esposo meu avô. Obstinada e brutal.
Abençoada a nossa loucura tão dura, tão pura.

A Ilda, minha avó, mãe de meu pai, de dura fé num deus castigador que justificava a sua severa aridez interior, escondendo uma dor abismal que vislumbro mas desconheço.
(Onde há doença não (me) resta senão ser cura.)

A Maria, minha bisavó (mãe de meu avô materno), pastora, camponesa, mulher de fé e humor vivo que criou 3 filhos sozinha com os frutos do seu lavor.
( e a tua amassada broa de milho, grão de sol amarelo carinhoso como nenhum outro)
A Adelaide, minha bisavó (mãe de minha avó materna), parteira, benzedeira, curandeira, lavadeira e bordadora que criou sozinha 5 filhos.
(ai os teus olhos negros que eu via azuis como céu aberto, e a insanidade que te perdia)

Às avós que não conheço.

À Mãe Divina, de quem sou inteira.
(Perceber-te não é importante, apenas Ser-Te.
A razão não cabe no coração aberto, fica à porta do indizível e pó se torna.)

Com reconhecimento, gratidão, Amor e liberdade.






Com Iris Lican (www.irislican.com)
© Fotos Luis Conde 
© Texto Iris Lican
Sintra, Junho 2014